Evo Morales e Sebastian Piñera têm pouco em comum. O primeiro, mandatário da Bolívia até o último fim de semana, é um político esquerdista, de origem indígena, ex-agricultor de coca. O segundo, atual presidente do Chile, é um empresário branco milionário e de centro direita.
Ambos enfrentaram nas últimas semanas massivas manifestações populares em seus países, com um saldo sangrento de mortos e centenas de feridos, além de destruição urbana. No último domingo, enquanto Evo renunciava ao posto, Piñera chamava uma constituinte para tentar deter a instabilidade social.
É certo que, tanto em um caso, como no outro, há elementos muito particulares que explicam a crise enfrentada pelos países.
No caso boliviano, ignorando um referendo popular que o vedava de concorrer a um quarto mandato, Evo não apenas saiu candidato, como se sagrou vencedor em primeiro turno – em eleições que a Organização dos Estados Americanos (OEA) afirma terem sido fraudadas e que estão agora anuladas.
No caso chileno, apesar das manifestações populares terem tido como ponto de ignição o anúncio de um aumento do preço das passagens de metrô, foi a baixa rede de proteção social pública, que tem levado aposentados à miséria, que forneceu o combustível ao levante social.
Mas existem elementos comuns não apenas na situação de Chile e Bolívia, mas no cenário da América Latina, que tem contribuído para a ida dos cidadãos às ruas.
São aspectos que ajudam a explicar também os gigantes protestos contra o presidente do Equador, Lenín Moreno, que o levaram a transferir a capital do país de Quito para Guayaquil há cerca de um mês, o fechamento do Congresso peruano pelo presidente Martín Vizcarra há um mês e meio e o mau resultado eleitoral para os governos incumbentes tanto na Argentina, em que o centro direitista Maurício Macri será substituído pelo peronista Alberto Fernández, e Uruguai, onde o segundo turno aponta para a derrota do candidato da frente de esquerda do presidente Tabaré Vasquez.
Depois da explosão das commodities, a pobreza mostra a cara
Em diferentes graus, os anos 2000 foram marcados por um crescimento acelerado dos países do continente. Basicamente produtores de commodities, como produtos agropecuários, minério, gás e petróleo, os latinos se beneficiaram do crescimento de mercados consumidores como a China e a Índia.
De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a pobreza no continente caiu de 27% para 12% entre 2000 e 2014. No mesmo período, houve uma redução de 11% na desigualdade entre ricos e pobres.
“Nesse período, a maior parte da América do Sul experimentou um crescimento sustentável, com redução não só da pobreza mas, em alguns lugares, da desigualdade também. O Banco Mundial estima que 100 milhões de pessoas entraram na classe média”, afirma Michael Shifter, presidente do think tank Inter-American Dialogue, baseado em Washington.
Nos últimos seis anos, no entanto, o cenário mudou. A economia reduziu o ritmo para um crescimento próximo de 1% entre 2014 e 2015. Em 2016, o PIB da região chegou a experimentar uma retração de 0,6%. Em 2017 e 2018 houve discreto crescimento, em 1,2% e 1%, respectivamente. E a projeção para 2019 é de estagnação, em 0,2%, enquanto a média global de crescimento supera os 3%.
A Bolívia, curiosamente, é a grande exceção a essa regra. Nesta última década, o país vem crescendo em média a 5% ao ano, e a economia boliviana deve registrar neste ano o maior crescimento da América do Sul. A última projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgada em outubro, sinaliza um avanço de 4% do Produto Interno Bruto (PIB).
O ciclo, que já foi chamado de “milagre econômico boliviano”, começou em 2006, quando Evo Morales chegou ao poder.
Desemprego crescente e descontentamento
Entretanto, no restante do continente, o descontentamento com a diminuição do ritmo de crescimento que deixou um rastro de desemprego crescente é visto por analistas como impulsionador dos movimentos que clamam por mudança.
“Esses 100 milhões da nova classe média descobriram que, em um contexto de desaceleração da economia, o caminho da ascensão social estava bloqueado para eles. Não é surpreendente que a frustração e a raiva tenham se espalhado pela região”, diz Shifter.
O acesso ao crédito foi cortado, e o consumo das famílias de classe média teve que ser reduzido, já que entre elas se espalhou o endividamento. A desigualdade entre o topo e a base da pirâmide econômica passou a chamar mais a atenção em países muito desiguais como o Brasil, que experimentou protestos de rua em 2013, e o Chile, sacudido por manifestações recentemente. Nos dois casos, o estopim do mal-estar generalizado foram aumentos nas passagens do transporte público.
Apesar do ciclo de prosperidade, a Bolívia também terá que tomar em breve medidas de austeridade tendo em vista a queda do ritmo de crescimento aliada à elevação do défict nas contas públicas.
O Equador tentou cortar subsídios de combustíveis de grupos indígenas e enfrentou protestos tão grandes que voltou atrás e ainda assinou lei para redirecionar recursos públicos às populações mais pobres do país.
Já a Argentina terá que descobrir como pagar o maior empréstimo já concedido na história do FMI sem empobrecer sua população.
“A América Latina é um dos lugares mais desiguais do mundo, isso não é novidade. Só que quando o crescimento desacelera, você tem menos redistribuição de riquezas, e as necessidades de ajustes fiscais costumam recair sobre quem já tem menos”, afirma a cientista política Maria Victoria Murillo, da Columbia University, em Nova York.
“A era das commodities trouxe a esperança de que a desigualdade diminuiria, e vemos que continuamos a ter um continente profundamente desigual economicamente, socialmente e simbolicamente.”
Polarização política e redes sociais
Em parte como efeito da desigualdade, a região vive uma intensa polarização de posicionamentos políticos. Há divisões regionais, como no caso da histórica desavença entre as regiões bolivianas de La Paz, de grande população indígena, e de Santa Cruz de La Sierra, grande polo empresarial, com população predominantemente de descedentes de colonizadores europeus.
Mas há ainda novos movimentos sociais. Um deles tem sido a redução na força de sindicatos ou associações de trabalhadores pela região. No lugar deles, igrejas evangélicas têm ganhado preponderância.
“As igrejas evangélicas são um fenômeno na América Latina porque muitas vezes são a única instituição presente nas áreas mais pobres e carentes. São elas que trazem uma rede de sustentação e sociabilidade para essas pessoas. E são também instrumento de mobilização social”, afirma Murillo.
Na Bolívia, horas antes da renúncia de Evo, seu opositor na direita, Luis Fernando Camacho afirmou que “a Bíblia vai voltar ao Palácio do Governo”.
“A participação política de evangélicos têm crescido no continente latino-americano como um todo. Como costumam ser conservadores em questões de costumes, gênero e sexualidade, esses grupos tendem a dar suporte a políticos de direita e extrema direita e muitos vezes os ajudam a mobilizar eleitores”, afirma a cientista política da Universidade do Estado de Iowa Amy Erica Smith, autora do recém-lançado Religion and Brazilian Democracy – Mobilizing the people of God, ainda sem tradução no Brasil.
“A questão é que, como defendem preceitos religiosos, que em tese são pregados por Deus, e que são mandamentos muito preto no branco, eles acabam demonizando adversários políticos, têm pouca propensão ao debate, pouca flexibilidade, o que contribui para a polarização”, afirma Smith.
Redes sociais
Smith nota ainda a importância que as mídias sociais tomaram na atividade política na região. Via Twitter, o presidente do Chile se desculpou “com humildade” depois de dar uma resposta enérgica – e mal-sucedida – contra as manifestações de rua que enfrentava.
Evo denunciou na mesma rede social uma tentativa de prendê-lo logo após a renúncia. Dias antes, via Facebook e Twitter circulavam imagens de uma prefeita aliada ao ex-presidente sendo torturada por opositores na rua.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro fez seu primeiro pronunciamento à nação, após a eleição, por meio de uma transmissão ao vivo na internet – tradicionalmente o discurso era televisionado em cadeia nacional. Ele costuma fazer política online, em contato direto com o eleitor, e estimulou seus principais ministros a fazerem o mesmo.
Pouco depois de vencer as eleições na Argentina, Alberto Fernández fez uma transmissão via Facebook para defender a libertação do ex-presidente Lula, o que Bolsonaro classificou como uma “agressão” à democracia brasileira.
“As redes sociais ganharam uma importância tamanha na política latino-americana que não é exagero dizer que possivelmente Bolsonaro não teria sido eleito sem elas. Viraram um meio pelo qual a política se organiza e acontece”, afirma Smith.
“Há um lado negativo nisso, já que elas ajudam a disseminar muito rapidamente o medo, a raiva e as informações equivocadas”, completa a especialista.
Democracias pobres, instituições combalidas
Há ainda uma onda de descrédito generalizado no continente em relação à política e às instituições democráticas. A Operação Lava Jato levou à investigação e à prisão de políticos graduados ou empresários não só no Brasil, mas em Argentina, Panamá, Peru, Venezuela e Equador. Apenas no Peru, quatro ex-presidentes estão implicados com atos de corrupção no âmbito da operação.
“Isso explica porque o presidente peruano fechou o Congresso e 85% da população apoiou a medida. A democracia se tornou menos popular na região, aumentou a tolerância com autoritarismos”, afirma Murillo.
Mesmo o Chile, habitualmente considerado menos corrupto que seus vizinhos latinos, se viu às voltas com suspeitas de corrupção envolvendo o filho de sua agora ex-presidente Michelle Bachelet, Sebastián, investigado por fraude, tráfico de influência e informação privilegiada por negócios que fez com entes públicos enquanto a mãe comandava o país.
“A maior parte dos partidos está amplamente desacreditada e já não canaliza mais as demandas de seus cidadãos”, diz Schifter.
Instituições desacreditadas
O descrédito também atinge as instituições. Na Bolívia, a OEA concluiu que a cúpula do Tribunal Superior Eleitoral fraudou as eleições em favor de Evo Morales. No Brasil, mensagens hackeadas atribuídas aos procuradores da Lava Jato e ao então juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, levantaram suspeitas de parcialidade na opinião pública.
“As pessoas se tornaram céticas e até cínicas em relação às instituições. A percepção de que investigações, juízes, órgãos agem politicamente orientados trouxe um dano real à democracia na região”, diz Smith.
Schifter aponta para um outro problema do descrédito institucional: “diante do vácuo de liderança, os militares podem se apresentar e querer retomar protagonismo político, o que é totalmente inapropriado em uma sociedade democrática”.
Na Bolívia, as Forças Armadas admitem ter “sugerido” a renúncia de Evo.
No Chile, Piñera enfrenta investigações por violações aos direitos humanos após convocar o Exército para reprimir manifestações de rua.
No Peru, militares chegaram a cercar o Congresso para impedir que os deputados entrassem na sede do Legislativo e desafiassem a ordem de fechamento dada pelo presidente.
No Equador, Lenín Moreno determinou que o Exército fizesse valer um toque de recolher contra os manifestantes.
No Brasil, quadros militares fazem parte da administração de Bolsonaro, ele mesmo egresso das Forças Armadas. Há uma semana, o general da reserva Eduardo Villas Boas, ex-comandante do Exército sugeriu que “uma convulsão social” poderia atingir o país a depender da decisão do Supremo Tribunal Federal de rever a prisão após condenação em segunda instância.
A medida acabou por beneficiar o ex-presidente Lula, que deixou a carceragem da Polícia Federal em Curitiba. “É um jogo perigoso para países que já experimentaram ditaduras militares”, diz Schifter.