Lei criada por Bolsonaro dá poder a Estados e municípios de fazer vacinação obrigatória

Desde agosto, o presidente Jair Bolsonaro vem se posicionando contra a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19.

Naquele mês, Bolsonaro afirmou a apoiadores que “ninguém pode ser obrigado a tomar a vacina”.

O presidente voltou a tocar no tema na última semana, após o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmar que a vacinação será compulsória no Estado.

Bolsonaro disse a apoiadores na segunda-feira (19/10) que “meu ministro da Saúde já disse que não será obrigatória essa vacina e ponto final”.

O presidente ainda fez referência à lei 6.259, de 1975, para dizer que esta norma atribui ao Ministério da Saúde a função de determinar quais são as vacinas obrigatórias no Brasil.

“A vacina contra o covid (sic) — como cabe ao Ministério da Saúde definir esta questão — ela não será obrigatória”, disse Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto.

No entanto, uma lei criada neste ano pelo próprio governo federal e sancionada por Bolsonaro dá poder aos Estados e municípios para aplicar uma vacinação compulsória contra a covid-19.

Essa lei não apenas prevalece sobre a lei de 1975 como é apoiada por uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) e por artigos e princípios constitucionais, segundo juristas ouvidos pela BBC News Brasil.

O que diz a nova lei?

A lei 13.979/20 prevê as medidas que podem ser adotadas no Brasil no combate à pandemia.

O texto foi elaborado pelo governo Bolsonaro e enviado ao Congresso, onde foi aprovado a toque de caixa no início de fevereiro e logo sancionada pelo presidente.

O artigo 3º prevê, em seu inciso 3, as ações que autoridades podem adotar, e, entre elas, está a vacinação compulsória.

O parágrafo 7º deste mesmo artigo estabelece que as medidas do inciso 3 poderão ser adotadas “pelos gestores locais”.

“Decorre dessa lei que os Estados e municípios têm autonomia para determinar que a vacinação será obrigatória. Isso não compete apenas ao governo federal”, diz Elival da Silva Ramos, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) e ex-procurador-geral do Estado de São Paulo.

Este é o mesmo entendimento de Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas.

“A lei autoriza os gestores locais a fazerem a vacinação obrigatória, mas isso nem precisaria estar na lei, porque é algo previsto na Constituição”, afirma Dias.

O que diz a Constituição?

A Constituição Federal estabelece no inciso 2 do artigo 23º que “cuidar da saúde e assistência pública” é de “competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”.

Ao mesmo tempo, o inciso 12 do artigo 24º do texto constitucional prevê que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente” sobre “previdência social, proteção e defesa da saúde”.

Enquanto o segundo artigo se refere à produção de normas para cuidar da saúde da população, o primeiro trata do cumprimento destas normas pelo Poder Executivo da União, dos Estados e do Município.

“Em ambos os casos, a Constituição diz que essas atribuições cabem ao mesmo tempo aos três entes federativos, que podem exercer essas competências simultaneamente”, afirma Dias.

A Constituição ainda prevê, no artigo 196, que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença”.

A isso se soma o princípio constitucional de que o Estado só pode interferir na liberdade individual do cidadão quando isso é necessário para proteger o bem-estar coletivo.

Ramos explica que, na questão da vacina, como é preciso fazer com que um contingente expressivo da população seja imunizado para que essa medida funcione no combate à pandemia, mesmo que haja um grupo de pessoas que não queira tomar a vacina, prevalece o interesse coletivo.

“Isso ocorre, por exemplo, quando a entrada de uma pessoa em um país é proibida por questão de saúde. Isso prevalece sobre a liberdade de deslocamento do indivíduo”, diz.

E quanto à lei de 1975?

Bolsonaro afirmou na segunda-feira que a prerrogativa de estabelecer quais vacinas são obrigatórias é do Ministério da Saúde, com base na lei federal 6.259/75.

Esta norma afirma que “cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”.

No entanto, ambos os constitucionalistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a lei federal sancionada neste ano pelo presidente prevalece sobre a antiga.

“A norma específica sobre o combate ao coronavírus afasta a incidência da norma geral que versa sobre o Programa Nacional de Imunizações. O governo pode ele próprio instaurar a vacinação obrigatória, mas não impedir que outros o façam”, diz Ramos.

Dias afirma que há outro critério jurídico que “não deixa muita dúvida” sobre essa questão.

“Além do critério da especialidade, há o critério cronológico, que determina que uma lei federal posterior prevalece sobre uma lei federal anterior.”

O que diz o STF?

Ramos afirma que, caso a vacinação passe a ser obrigatória em algum Estado, o governo federal poderá questionar a medida na Justiça, mas avalia que o resultado deste processo seria “previsível”.

Isso porque o Supremo Tribunal Federal (STF) reiterou, em abril deste ano, que tanto a União quanto os Estados e Municípios têm competência para tomar medidas de combate ao coronavírus.

Na ocasião, o governo federal editou uma medida provisória que estabelecia que a restrição de deslocamento em território nacional cabia à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o que na prática tirou a prerrogativa dos governos estaduais e municipais de fazerem isso.

O PDT moveu uma ação alegando que a medida era inconstitucional, o que foi aceito por unanimidade pelos ministros do STF.

Dias destaca ainda que o Supremo ressaltou que a aplicação de medidas relativas à saúde deve ser baseada em fundamentos técnicos.

“Havendo comprovação de que a vacina é segura e eficaz, o poder público, nas três esferas, está autorizado a tomar medidas para que a vacinação seja compulsória.”

Ramos diz que a decisão do STF tornou o que vinha se configurando como um debate ideológico em torno da saúde em uma questão de natureza técnica.

“É lamentável que uma questão de vida ou morte como a que enfrentamos seja envolvida em interesses políticos.”

O que diz o governo?

Procurado pela BBC News Brasil, o Planalto afirmou em nota que “o presidente da República já se pronunciou publicamente sobre o assunto”.

A reportagem questionou o governo federal novamente, especificamente sobre o conflito entre as leis federais e o entendimento apresentado pelos especialistas, mas não obteve resposta.

Por sua vez, o Ministério da Saúde afirmou em nota que “o governo federal oferecerá a vacinação contra a covid-19 de forma segura”.

“Mas não recomendará sua obrigatoriedade aos gestores locais, respeitando o direito individual de cada brasileiro.”

Informações de BBC Brasil.

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