Risco iminente de rompimento de barragem da Vale no distrito de Macacos, perto de Belo Horizonte, altera rotina de moradores, espanta turistas e deixa em suspenso o futuro do local
“Há quase um ano, o nosso sossego acabou”, lamenta Madalena das Dores Braga, de 63 anos, moradora do pequeno distrito de São Sebastião das Águas Claras, na região metropolitana de Belo Horizonte. A rotina do tranquilo local, conhecido popularmente por Macacos, foi quebrada quando a sirene da mineradora Vale tocou, na noite de 16 de fevereiro, alertando os moradores de que a barragem B3/B4 da Mina Mar Azul, a poucos quilômetros dali, corria risco de se romper e repetir tragédia similar às vistas em Mariana, em 2015, ou em Brumadinho, há um ano.
“Foi aquele desespero. Meu marido tem problema de demência e é muito gordo. Eu demorei muito para conseguir tirar ele daqui de casa. Não sabíamos para onde fugir e fui para a casa do meu filho que mora na parte mais alta da cidade”, conta a aposentada que ainda se sente insegura de permanecer no local, ainda que a defesa civil já tenha informado que a residência dela está fora da área de risco e que, em caso de um rompimento, a lama não alcançaria o local.
Naquela noite, mais de 300 moradores de Macacos foram retirados de suas casas às pressas após auditores atestarem a instabilidade da barragem. A B3/B4 abriga cerca de 3 milhões de metros cúbicos de rejeitos com estrutura a montante (quando a barragem vai crescendo em forma de degraus para dentro do reservatório utilizando o próprio rejeito), o mesmo modelo de construção utilizado nas barragens do Córrego do Feijão, em Brumadinho, e do Fundão, em Mariana, que romperam provocando tragédias.
Não demorou muitos dias para que, novamente, a sirene colocasse em sobressalto Braga e toda a cidade. Em março, a Vale elevou o alerta, antes em nível 2, para o nível 3, o último antes de um possível rompimento. Desde então, os moradores vivem em compasso de espera, com o medo constante de que a estrutura possa se romper a qualquer minuto. Em muitas ruas, placas com os dizeres “rota de evacuação”, apontam , agora, o caminho a ser seguido em caso de emergência.
Quem foi deslocado de casa ainda não sabe se um dia irá voltar. “Eu nunca imaginei que passaria um ano inteiro em uma pousada. O local é confortável, mas não é o meu lar. Mas também não dá para viver em uma casa que tem chance de receber respingo de lama”, lamenta Sandra Pascoal, de 68 anos. Segundo a Vale, o retorno dos moradores residente na Zona de Autossalvamento (ZAS) —como chama a região quer seria afetada pela lama— será avaliado quando a barragem alcançar fator de segurança adequado, mas ainda não há qualquer previsão. Atualmente, 14 cidades em Minas Gerais convivem com barragens consideradas de alto risco. No Estado, são ao todo 22 barragens interditadas por não terem sua estabilidade atestada.
O conselho da mineradora é que “a população deve manter rotina normal, permanecendo atenta aos chamados de emergência”. Mas a sugestão parece quase impossível para a localidade de cerca de 4.000 habitantes.
O clima de incerteza e apreensão espantou os turistas amantes da natureza que visitavam o local e fizeram os restaurantes e pousadas da localidade amargarem perdas durante todo o ano passado. Alguns tiveram que fechar as portas e demitir os funcionários. Na entrada da cidade, a placa de um bar fechado já anuncia o sumiço dos visitantes: “O sonho acabou, encerramos as atividades, não foi possível sustentar sem a participação dos turistas”.
Cristina Paula, que abriu um restaurante cinco meses antes de a sirene tocar, conta que o faturamento do local despencou 70% após a notícia que a barragem corria risco iminente de rompimento. “Antes, ele estava indo muito bem”, conta. Para não ficar no vermelho, optou por diminuir os dias de abertura do bar. Atualmente, o local funciona apenas de sexta a domingo. “As pessoas precisam saber que essa área do centro, onde estão localizados os principais barzinhos e restaurantes, não está na zona de risco, e pode ser frequentada normalmente. Precisamos mudar essa imagem ruim que ficou”, explica. “O movimento está voltando aos poucos, mas este período de férias era para estar mais cheio”, conta ela numa tarde de sexta-feira de janeiro, em que a cidade parecida adormecida.
O que vem mantendo alguns estabelecimentos vivos é a circulação dos vouchers de alimentação concedidos pela Vale a todos os moradores, apelidado de bitmonkey. Cada cidadão recebe semanalmente 14 vales de 20 reais, referentes ao almoço e jantar para todos os dias da semana, que podem ser usados para compras em supermercados, restaurantes e outros estabelecimentos que comercializam alimentos.
“Ele começou como uma ajuda para alimentação, mas depois acabou servindo também para esquentar o comércio da cidade. Como não tinha turista, quem comprava e ia aos restaurantes eram os moradores com os vouchers. Ele injetou dinheiro na cidade e acredito que, por conta disso, é mantido até hoje”, explica Melina Neves Francisquini, de 36 anos, presidente da associação comunitária de Macacos.
Mas a chegada da nova moeda na cidade gerou também a criação de um mercado paralelo do ticket. Alguns moradores preferem “vender” para os comerciantes o papel dado pela Vale por cerca de 17 reais (três reais a menos) do que gastar em comida. Os comerciantes são os únicos autorizados a trocarem os vouchers por dinheiro no posto de atendimento da mineradora.
“Hoje em dia, como várias pessoas ficaram desempregadas, esse voucher chega a ser o sustento de alguns moradores, se a Vale cortar esse benefício, não sei o que eles vão fazer”, diz Francisquini. Segundo a empresa, não há uma previsão para tirar o ticket de circulação. E, a pedido da comunidade, a Vale apresentou ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) proposta de migração do voucher-refeição para um pagamento emergencial em dinheiro.
Visando conter a força da lama caso a barragem se rompa, a mineradora começou a construir um muro de contenção com pedras de 30 metros de altura que deve ser finalizado no fim de 2020. A obra transformou o cenário do distrito, que foi invadido pelo barulho e pela presença de caminhões. “Na estrada que dá acesso à cidade chegaram a transitar 450 caminhões por dia, agora passou para uma média de 80, o que ainda é muito para o local”, explica a presidente da associação dos moradores.
Na avaliação de Francisquini, a mineração tem sido cruel com as comunidades que estão no entorno. “Ela leva os lucros todos para fora, não traz benfeitoria local e expõe a comunidade a riscos e ao adoecimento.” diz. Ela lembra que, em 2001, a cidade já tinha vivido um episódio trágico quando uma barragem da Rio Verde ( que foi comprada posteriormente pela Vale) rompeu matando 5 funcionários. “Teve morador daqui que ficou debaixo da lama em um caminhão e conseguiu sair graças a Deus. Então já havia um medo quanto as sete barragens da região, ainda mais após Mariana e Brumadinho, mas nunca conseguimos informações precisas, um plano de risco e de emergência”, relata.
Enquanto a barragem está sendo descontinuada (extinta) pela Vale, a comunidade precisará se reinventar, segundo Francisquini. “A descaracterização dessa barragem vai demorar muitos anos. Não podemos ficar parados, precisamos sobreviver, ter a fonte de renda restabelecida, do nosso turismo. A gente não pode esperar anos para normalizar”, ressalta.
A presidente da associação dos moradores tem dúvidas, no entanto, se esse é o momento correto para apostar numa campanha de marketing —que está sendo viabilizada pela Vale— para chamar de volta os turistas. “Claro que precisamos fazer uma recuperação do turismo, mas é preciso esperar o momento para ser realizada essa ação. Agora temos muitos lugares fechados, talvez a pessoa chegue aqui e não ache legal e nunca mais volte. É uma situação complexa”, diz Francisquini. Por ora, seu desejo é que as sirenes da cidade nunca mais precisem ser acionadas.
Fonte: El Pais Brasil