Metrópole chinesa considerada o epicentro do surto foi isolada pelo Governo nesta quinta-feira. Ruas e aeroportos ficaram vazios, mas hospitais continuam lotados, informa enviado especial
Havia pouco movimento nas ruas de Wuhan na manhã desta quinta-feira. Um manto de poluição cobria o céu, dando-lhe um aspecto cinzento e espesso. Desde as 10h desta quinta-feira (23h de quarta-feira em Brasília) está em vigor a quarentena anunciada na véspera pelas autoridades locais. A partir de então, e até novo aviso, ficou proibido entrar e sair desta metrópole de 11 milhões de habitantes na China central, que na prática se tornou uma cidade fechada. O Governo chinês pretende assim controlar a propagação do recém-descoberto coronavírus 2019-nCoV, que teve um avanço significativo nos últimos dias, inclusive além das suas fronteiras. Os dados mais recentes apontam 17 mortes e 561 diagnósticos de contaminação.
A medida afeta a todos os voos, trens e ônibus, assim como o serviço de metrô. Na estação Yunfei, por exemplo, grades barram todos os acessos, menos um. Ali, um segurança que prefere não se identificar comenta, pouco antes da paralisação programada para as 10h, que o fluxo de passageiros era bem inferior ao de um dia normal. Admite o desejo de “voltar para casa”. A proibição afeta também os táxis interurbanos, embora alguns ainda fossem vistos na rua. No Didi —um aplicativo semelhante ao Uber— já não havia mais motoristas disponíveis. As rodovias foram fechadas, de modo que os veículos particulares tampouco podem deixar a cidade.
Esse bloqueio é uma das medidas incluídas no protocolo de ação para situações de maior gravidade, cuja adoção foi anunciada na quarta-feira pelo Conselho de Estado, embora o cenário continue catalogado como doença infecciosa de nível B, o segundo mais alto. Esse protocolo também abre espaço para a mobilização das forças armadas.
Diante do anúncio do cerco, muita gente se dirigiu ao aeroporto e às estações ferroviárias para tentar ir embora antes das 10h. Uma delas era Niki, uma estudante taiwanesa de 22 anos que tinha vindo a Wuhan visitar uma amiga. Ela manifestava a convicção de que conseguiria chegar a tempo, já que tinha encontrado um motorista particular disposta a levá-la. “Vim para o lugar errado!”, despedia-se, enquanto corria rua abaixo empurrando suas malas. O aeroporto de Wuhan ficou saturado, com filas de até 100 metros nos balcões de check-in, segundo relatos da imprensa local.
Com essa decisão, o Governo pretende isolar o epicentro do surto, algo particularmente importante dada a proximidade com o Ano-Novo chinês, no próximo sábado. Essa festividade marca o início de uma semana de férias nacionais, quando os chineses costumam viajar para visitar parentes no interior ou fazer turismo no estrangeiro. Calcula-se que ocorram até três bilhões de deslocamentos, na maior migração humana do mundo. Wuhan, com uma população maior que Londres ou Nova York, é também um importante entroncamento ferroviário. Nesta quinta-feira, em um contraste pouco habitual, as vitrines de muitos estabelecimentos na cidade ostentavam as decorações típicas desta época, embora estivessem praticamente vazios.
Estão sendo cumpridas, dessa forma, as instruções de Zhong Nanshan, cientista que lidera a equipe que tenta vencer o coronavírus. “A partir do momento em que a transmissão entre humanos ficou provada [algo que era descartado até esta semana], a quarentena deve ser a principal prioridade”, afirmou ele numa entrevista coletiva na terça-feira. Zhong, de 84 anos, é a maior eminência chinesa em doenças infecciosas e ganhou fama em 2002 ao comandar a reação do Governo à epidemia da síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês). Essa epidemia, também originada na China e que matou 700 pessoas em todo mundo, transformando-se numa crise global, ficou marcada na memória da população. “A quarentena é a medida mais efetiva porque até desenvolvermos um medicamento específico para fazer frente ao coronavírus”, afirma o pesquisador.
Outra exigência imposta pelas autoridades locais em Wuhan passa pelo uso obrigatório de máscaras em espaços públicos. Esse objeto se tornou a primeira linha de defesa contra o surto, e ninguém sai de casa sem ela. Em muitos dos supermercados, as prateleiras dessas máscaras estão vazias. “Todas foram vendidas, até as do estoque. Não sei quando trarão mais”, comentava o funcionário de uma loja da rua Qinghuang, a cinco quilômetros do centro, protegido com o seu acessório.
Hospitais saturados
Mas, perante o número crescente de casos, os hospitais parecem não dar conta. O jornal Notícias de Pequim informou que muitos deles estão saturados de pacientes, alguns dos quais fazem filas do lado de fora, apesar do frio. As salas de transfusão também estão abarrotadas, e muitos atendidos se amontoam no corredor, conectados a seus conta-gotas. “Meu pai tem febre alta e problemas respiratórios desde 2 de janeiro. Depois de vários tratamentos que não funcionaram, no dia 10 o hospital nos informou que não podiam interná-lo porque não tinham leitos livres. Fomos transferidos para o hospital Wuhan Xinhua, e lá tampouco puderam atendê-lo. Seu estado piorou, já está há 12 dias com febre alta, e todo dia precisa caminhar até o centro de saúde para que lhe deem oxigênio: sem internação, sem exames, sem quarentena”, denunciava um usuário no Weibo (uma espécie de Twitter chinês).
A área de desembarque do aeroporto de Wuhan estava deserta na noite desta quarta-feira. Um dos últimos voos do dia trazia pouco mais de 20 passageiros, todos protegidos com máscaras. Um deles era Xian Pin, de 28 anos, funcionário de uma companhia financeira, que se dirigia à cidade para um compromisso profissional. “É muito importante, se fosse qualquer outra coisa não me ocorreria ter vindo. Optei por limitar minha viagem ao máximo, por isso amanhã voarei de volta a casa. Estou muito preocupado”, dizia. Por causa da imposição do veto, o mais provável é que Xian Pin não tenha conseguido seu propósito. No mesmo avião, a comissária Lian contava que o número de passageiros nos voos para Wuhan já havia caído bastante. Ela própria é moradora da cidade, mas citava um provérbio popular para ilustrar sua tranquilidade: “Uma bênção não é uma maldição, e uma maldição não tem escapatória”.
Nos arredores do aeroporto, sem medidas de segurança excepcionais à vista, o taxista Zheng Wang se queixava: “Estou há cinco horas parado na fila, não vêm passageiros, então não saímos daqui”. Seu filho, de 13 anos, não vai ao colégio desde o dia 10 porque as aulas foram suspensas. Perguntado sobre a credibilidade das cifras oficiais de vítimas, responde: “Disso é melhor nem falar”. O Governo ameaçou castigar quem contribuir para espalhar boatos, assim como funcionários públicos locais ou regionais que maquiarem a realidade.
Apesar de sua inquietação, Xian Pin se mostrava otimista. Não recorda a epidemia do SARS porque “era muito pequeno”, mas está seguro de que desta vez não será tão grave. “A China é atualmente um país poderoso, e nosso líder Xi Jinping se dirigiu ao povo para assegurar que nossas melhores mentes estão trabalhando nisso. Confio em que logo poremos ao vírus sob controle.”
Cronologia do coronavírus
31 de dezembro de 2019. A China informa sobre um caso de pneumonia de origem desconhecida detectado na cidade de Wuhan.
3 de janeiro. Notificados os primeiros 44 casos de uma misteriosa pneumonia.
7 de janeiro. As autoridades chinesas identificam um novo tipo de coronavírus.
11 de janeiro. Primeira morte confirmada pela nova pneumonia.
11 e 12 de janeiro. A Comissão Nacional de Saúde da China informa que o surto está associado ao contato com frutos do mar em um mercado na cidade de Wuhan.
12 de janeiro. China compartilha o sequenciamento genético do novo coronavírus para que os demais países possam estudá-lo e desenvolver ferramentas específicas de diagnóstico.
13 de janeiro. A Tailândia notifica o primeiro caso importado do novo coronavírus (2019-nCoV) de Wuhan, confirmado por laboratório.
15 de janeiro. O Japão relata um caso importado do coronavírus.
20 de janeiro. A Coreia do Sul relata um caso confirmado. A cifra oficial de contaminados sobe a 198.
21 de janeiro. Os Estados Unidos notificam o primeiro caso confirmado fora da Ásia.
O que se sabe sobre a infecção
Afetados na China. 17 mortos e 571 infectados, segundo a Comissão Nacional de Saúde em 22 de janeiro.
Casos no exterior. A Tailândia informou sobre quatro casos, e a Coreia do Sul, Japão, Taiwan e Estados Unidos registraram um paciente cada um. Os doentes são residentes de Wuhan ou visitaram a cidade recentemente.
Origem. As autoridades chinesas situam o foco em um mercado de Wuhan que comercializava ilegalmente animais selvagens. Segundo a OMS, um animal parece ser a fonte primária mais provável do vírus.
Contágio. Há evidências da transmissão por via respiratória do vírus entre pessoas, conforme confirmaram as autoridades chinesas nesta quarta-feira. Quinze profissionais da saúde foram contaminados.
Fonte: El Pais Brasil