Regulamentação do homeschooling ganha novo fôlego em Brasília com isolamento por coronavírus

De uma hora para outra, famílias por todo o Brasil estão conduzindo mais ativamente atividades escolares de seus filhos de dentro de casa.

É um cenário próximo àquele com o qual alguns movimentos e políticos que defendem a regulamentação do ensino domiciliar no Brasil sonham há algum tempo, e que está sendo forçado temporariamente por medidas de isolamento social impostas pela pandemia de coronavírus.

Em Brasília, as mudanças trazidas pela covid-19 estão catalisando projetos de regulamentação do chamado homeschooling — pauta apontada em janeiro de 2019 como uma das metas prioritárias do governo de Jair Bolsonaro em seus primeiros 100 dias de gestão, mas cuja tramitação empacou no Congresso (entenda mais abaixo).

Segundo afirmou uma fonte do governo à BBC News Brasil no dia 15, o Ministério da Educação (MEC) enviou à Casa Civil um rascunho de nova Medida Provisória (MP) sobre o tema, que depois seguiria para o Congresso. A intenção é que o texto consolide uma regulamentação mesmo para depois da pandemia, mas aproveitando o contexto atual para avançar com a pauta.

Ao mesmo tempo, há um entendimento no próprio governo de que é mesmo o Congresso que tem legitimidade para assumir a pauta.

Procurada, a assessoria do MEC afirmou que não há “nada fechado sobre o tema” e que não iria comentar a informação de que haveria um novo rascunho com a Casa Civil.

Na Câmara, a deputada federal Dorinha Rezende (DEM-TO), relatora na Comissão de Educação de um projeto que tramita desde 2012 na Casa, apresentou no último dia 2 uma emenda à MP 934 que regulamenta a educação domiciliar durante a pandemia.

A MP 934 foi enviada pelo governo para ajustar o calendário escolar no país por conta da covid-19, definida uma situação de emergência de saúde, e já recebeu centenas de emendas.

O texto da emenda da deputada federal é semelhante ao de sua relatoria, prevendo que “é admitida a educação básica domiciliar, sob a responsabilidade dos pais ou tutores responsáveis pelos estudantes, observadas a articulação, supervisão e avaliação periódica da aprendizagem pelos órgãos próprios dos sistemas de ensino”.

Em entrevista à BBC News Brasil, Rezende afirmou que, considerando a composição do Congresso atual, acredita haver chance da questão ser finalmente “enfrentada” — primeiro para o calendário escolar deste ano, com regras flexibilizadas pela MP 934; mas também possivelmente depois com um caráter definitivo para o homeschooling no Brasil.

“Tenho muita clareza que a circunstância da pandemia é uma coisa, e a regulamentação do homeschooling (definitiva) é outra. Mas a pandemia traz a oportunidade do Congresso finalmente enfrentar esse debate, já que o homeschooling já é regulamentado em mais de 60 países”, disse a deputada federal em entrevista por telefone.

“As famílias estão conhecendo (durante a pandemia) a base do homeschooling. E, quem já pratica a educação domiciliar está em uma situação mais privilegiada neste momento do que quem está na educação tradicional. O sistema (educacional) não estava preparado para esta experiência do ensino em casa, e nem para o próprio ensino à distância (EAD), que ainda está sob uma série de questionamentos.”

Prática não é permitida hoje

Hoje, vale o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que, por não haver legislação específica regulamentando a prática, o ensino domiciliar não é permitido no país. A decisão da Corte, com caráter de repercussão geral, é de setembro de 2018.

Famílias que já praticavam o ensino domiciliar mesmo sem regulamentação ficaram em maior vulnerabilidade jurídica após a decisão do STF, diz Ricardo Dias, presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), pois mais sujeitas a ações de Conselhos Tutelares e de Ministérios Públicos pelo país.

A própria matéria avaliada pelo STF em 2018, um recurso extraordinário (RE), teve origem em uma disputa entre os pais de uma menina de 11 anos e a secretaria municipal de Educação de Canela (RS), que determinou que a criança fosse matriculada na rede regular de ensino.

Mas o presidente da associação afirma que, mesmo após a decisão do STF, a escolha de famílias pelo homeschooling cresceu no país. Nesses casos, as famílias assumem o risco de processos abertos pelo poder público e, após os 15 anos de idade mais ou menos, os adolescentes são matriculados em cursos supletivos e fazem a prova do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) para obter uma certificação formal.

Apesar de destacar que “quarentena não é homeschooling“, porque o homeschooling também prevê atividades fora de casa, Dias diz que a pandemia de coronavírus está fazendo com que mais famílias estejam procurando a associação para pedir orientação para mediar atividades escolares em casa.

“Papais e mamães de famílias educadoras (termo usado no meio para falar daquelas que praticam homeschooling) não estão estressados por não saber o que fazer com os filhos em casa. O grande legado deste momento (de pandemia) é o que ele está fazendo na mente das pessoas, com um quebra de paradigma sobre a educação domiciliar. As pessoas estão percebendo que podem sim cooperar no ensino do seu filho.”

Com notícias de bastidores de um possível novo projeto vindo do governo ou a emenda da deputada Dorinha Rezende, Dias diz que ele e outras famílias favoráveis à modalidade de ensino estão “confiantes, mas sóbrios” de que a pauta vá avançar.

“Estamos confiantes porque tem a possibilidade de uma emenda, uma nova MP do governo, e há também projetos de lei já tramitando no Congresso. Acreditamos que, de um jeito ou de outro, em alguma hora a educação domiciliar será regulamentada”, diz o presidente da ANED, que conta que os seus dois filhos estão na faculdade e foram educados no ensino básico em casa.

“Mas estamos sóbrios porque há muitos anos estamos esperando iniciativas como essas avançarem, para finalmente conquistarmos nossa tão sonhada liberdade educacional.”

Por causa da decisão do STF não autorizando a prática, a regulamentação pelo Legislativo se tornou ainda mais esperada por defensores do ensino domiciliar.

O Planalto enviou em abril de 2019 um projeto de lei sobre o tema que foi apensado àquele de 2012, relatado por Dorinha Rezende e de autoria do deputado Lincoln Portela (PL-MG). No ano passado, governo e parlamentares de sua base demonstraram alinhamento na matéria. O texto aguarda avaliação por uma Comissão Especial, que não foi instalada ainda.

Enquanto isso, com a pandemia de coronavírus, a emenda de Dorinha Rezende poderá ser avaliada quando a MP 934/20, publicada pelo governo no primeiro dia de abril, for votada na Casa.

Oposição teme caráter definitivo da modalidade de ensino

A deputada Dorinha Rezende afirma que, por sua trajetória na “educação formal”, sua defesa do ensino domiciliar não se justifica por uma “orientação ideológica”, mas sim pelo desejo de garantir o direito das famílias e das crianças pela liberdade de acesso a uma modalidade mais alinhada a seus valores.

“Não defendo discursos mais conservadores para justificar o ensino domiciliar, como o de não querer que o filho tenha contato com debates sobre gênero na escola. Esse tipo de argumento exige muito cuidado, porque não se trata de isolar a criança do modelo da escola. A socialização fora de casa é importante.”

Na sua relatoria do projeto de lei, ela diz ter contemplado contestações de críticos ao ensino domiciliar, prevendo em seu texto uma maior participação de escolas e secretarias de educação no monitoramento e avaliação de alunos em regime de ensino domiciliar.

Agora, com sua emenda à MP 934, ela defende que as instituições conseguiriam monitorar o homeschooling durante a pandemia pois já estão fazendo ajustes para este contexto de ensino remoto.

Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), da oposição e integrante da Comissão de Educação no ano passado, ainda que o modelo de ensino domiciliar desenhado possa prever atividades fora de casa e acompanhamento por parte do sistema educacional, este contato exterior é insuficiente para garantir o que a escola, como “espaço de reflexão crítica”, fornece presencialmente.

Braga disse também à BBC News Brasil que as movimentações recentes a favor da pauta acendem um “sinal amarelo” para a oposição, criticando que medidas transitórias por conta da pandemia possam “ganhar ares de permanência”.

“A escola é o espaço de reflexão crítica, que dá ao aluno a possibilidade de relação com um mundo que extrapola a sala de sua casa, com contato com outros estudantes, professores… O viés conservador da educação domiciliar leva ao isolamento deste ambiente.”

“Não posso generalizar e delimitar todos os casos de quem adota a educação domiciliar a isso, mas é inegável que este é um movimento que vem acompanhado de razões conservadoras, da negação da escola como espaço de reflexão crítica.”

“O que estruturalmente tem um viés conservador não se modifica por instrumentos laterais”, diz o deputado do PSOL quando questionado sobre instrumentos de controle pelo Estado do ensino domiciliar, como a vinculação a uma escola defendida por Dorinha Rezende.

Ainda que Braga e outros parlamentares da oposição como a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) tenham se posicionado recentemente contra o homeschooling — em um projeto de lei seu de março, também sobre o calendário escolar durante a pandemia, a deputada frisou que a flexibilização das atividades escolares não visa “incentivar Educação Domiciliar” —, os defensores do ensino domiciliar têm agitado os corredores do Congresso.

Em março de 2019, foi criada a Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling, com mais de 200 assinaturas.

Um levantamento feito pela Câmara dos Deputados mostrou que, de 1º de fevereiro de 2019 a 31 de janeiro de 2020, o projeto de lei sobre ensino domiciliar enviado pelo governo em 2019 foi o mais visualizado no site da Casa no tema educação.

Informações de BBC Brasil.

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