Um biomaterial capaz de proteger implantes médicos e odontológicos da contaminação por microrganismos como bactérias e fungos, evitando eventuais infecções que possam complicar o estado de saúde do paciente.
E tudo isso ainda ajudando o meio ambiente, por meio do uso de gás carbônico (CO2), que pode ser retirado da atmosfera e utilizado como matéria-prima em sua produção. A tecnologia, desenvolvida por pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP, gerou um artigo que foi publicado na Journal of Sol-Gel Science and Technology, revista científica internacional.
Elton de Souza Lima, o autor da pesquisa realizada durante seu doutorado no IQSC, explica que “o biomaterial poderá ser empregado como filme para revestir a superfície de um implante ou ainda ser utilizado como membrana para curativos de feridas crônicas. A vantagem desse material em relação aos já rotineiramente utilizados é a sustentabilidade associada ao seu processo de obtenção [por meio da utilização de CO2] e também sua elevada atividade antimicrobiana, sendo efetivo até mesmo contra alguns microrganismos resistentes a antibióticos. Vale ressaltar que uma das principais causas de falhas de implantes são infecções causadas por fungos e bactérias, e solucionar esse problema tem sido objetivo de grandes esforços da ciência’.
O material tem um nome diferente, se chama poli-hidroxiuretana (PHU) ou ainda Poliuretana Livre de Isocianato (NIPU). Atualmente, as PHUs possuem “mil e uma utilidades”, podendo ser aplicadas na construção civil, indústria de sapatos, veículos, mobiliários, tecidos, dispositivos biomédicos, roupas, recobrimentos de paredes ou utilizadas como adesivos, espumas, etc.
O protótipo desenvolvido durante a pesquisa da USP, especificamente, além de utilizar o CO2 como matéria-prima, possui em sua composição silicato, que é um tipo de mineral, ácido fosfórico e silicone, este último componente, um dos diferenciais da tecnologia.
“Nós fomos os primeiros pesquisadores a preparar hidroxiuretanas com segmentos siliconados e mostrar a sua aplicabilidade em revestimentos. O benefício do uso do silicone é que ele permite que o material seja mais flexível e resistente à umidade, água e a meios agressivos, como em soluções com ácido sulfúrico e soda cáustica”, explica Ubirajara Pereira Rodrigues Filho, professor do IQSC e um dos autores do trabalho.
O docente afirma que a nova tecnologia pode ainda ser utilizada como revestimento anticorrosão em placas de aço e ligas de titânio, que normalmente são utilizadas em implantes, evitando, assim, o desgaste do material. E não para por aí. Outra possível aplicação da tecnologia criada na USP é sua utilidade como cola para aderir camadas de vidro em janelas, por exemplo. A expectativa é de que o produto esteja no mercado em até dois anos.
Segurança e eficácia contra patógenos
Para avaliar a eficácia do biomaterial contra microrganismos e a segurança de sua aplicação, os pesquisadores contaram com universidades parceiras, que foram responsáveis pela realização de diversos testes, entre eles, o que demonstrou que o produto não é tóxico quando aplicado em fibroblastos, que são as principais células envolvidas na cicatrização e responsáveis pela manutenção da integridade da pele.
Em outro teste, chamado de “molhabilidade”, o objetivo foi investigar uma possível deformação do material em meio líquido, o que não aconteceu com a poli-hidroxiuretana da USP, pelo contrário, ela se mostrou hidrofóbica, ou seja, consegue se “proteger” da água, contribuindo para que qualquer metal que seja revestido por ela não sofra corrosão em ambientes aquosos.
Por fim, mas não menos importante, foram realizados ensaios para analisar a atividade antimicrobiana do material. Na Universidade Anhanguera, sob a coordenação do professor Márcio L. Santos, a tecnologia foi testada com três bactérias: Escherichia coli, Staphylococcus aureus e Enterococcus faecium (resistente ao antibiótico vancomicina), organismos capazes de causar desde pequenas intoxicações até pneumonia e meningite. Os resultados comprovaram a eficiência do material do IQSC para a eliminação de 95% a 100 % dos patógenos.
Na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o material foi testado contra diversos tipos de fungos, dois deles muito perigosos para os seres humanos pelo risco de causar infecções e levar a óbito pacientes internados ou com a imunidade comprometida. São eles: o Candida albicans e o Aspergillus fumigatus. A taxa de mortalidade desses patógenos pode chegar a 60% em pessoas imunodeprimidas.
Segundo o professor da UFSCar, Iran Malavazi, os resultados foram animadores e mostram um caminho promissor: “Nos testes que realizamos, as poliuretanas demonstraram, contra diversos tipos de fungos, tanto atividades biocidas [conseguiram matar os fungos] como biostáticas [frearam a multiplicação/crescimento dos microrganismos]. Além disso, como não estamos falando de um remédio que será ingerido pelo paciente e que pode desencadear a resistência dos fungos depois de algum tempo de aplicação, teremos um grande ganho dentro do ambiente hospitalar. Vale ressaltar ainda a capacidade desse biomaterial ser produzido em larga escala, além de seu mecanismo de ação ser capaz de atacar não somente um alvo específico, mas vários”, diz o docente.
Segundo o especialista, as doenças ocasionadas por fungos são negligenciadas, embora elas acometam muita gente ao redor do mundo. “Se nós somarmos todas as infecções e mortes causadas por fungos, teríamos uma letalidade muito maior do que, por exemplo, a da malária. As pessoas conhecem pouco sobre fungos, não têm muita informação sobre os problemas que eles causam. Alguns, inclusive, podem desencadear pandemias e muitos têm desenvolvido mecanismos de defesa e resistência contra as drogas disponíveis atualmente no mercado. Diferentemente do combate às bactérias, em que temos um arsenal terapêutico maior, para os fungos nós temos poucas opções, apenas três classes terapêuticas, que já são muito antigas”, completa.
Produto sustentável
Pensar em formas mais seguras e sustentáveis para a produção do material também foram preocupações dos cientistas. Além de utilizar um produto que contribui com o meio ambiente, o paciente que tiver contato com essa tecnologia correrá menos riscos de sofrer com alergias e infecções em um eventual procedimento médico.
“A primeira vantagem em se utilizar o gás carbônico numa rota química de produção de um material é a oferta de uma forma de mitigação deste gás, que tem características de reter o calor na superfície da terra e, consequentemente, contribuir para o aquecimento do planeta. Em termos de processo produtivo, utilizando a rota com o gás carbônico foi possível substituir o isocianato, matéria-prima utilizada nos processos tradicionais de produção de poliuretanas e que é altamente tóxica aos seres humanos e ao meio ambiente”, explica Kelen M. Flores de Aguiar, ex-doutoranda do IQSC e uma das autoras do artigo publicado.
A cientista, que atualmente trabalha como professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), acrescenta ainda que, para produzir o material, seria possível, inclusive, captar o gás carbônico diretamente de indústrias, que muitas vezes lançam o CO2 diretamente para a atmosfera durante seus processos fabris.
Futuramente, outra possibilidade seria utilizar a tecnologia de Captura Direta do Ar (DAC, do inglês Direct Air Capture) para sequestrar o CO2 direto da atmosfera, tecnologia esta que tem ganho destaque devido aos efeitos do aquecimento global e ao prêmio oferecido pelo CEO da Tesla, Elon Musk, de US$100 milhões para quem desenvolver a melhor solução para essa finalidade.
Os pesquisadores reiteram que a nova tecnologia desenvolvida no IQSC é bastante promissora, uma vez que os primeiros resultados apontam para um material com processo de obtenção sustentável e com potencial para ajudar no grande desafio que é evitar infecções microbianas que frequentemente levam implantes médicos e odontológicos a alguma falha.
Nos próximos passos do estudo, os pesquisadores pretendem testar a ação do material contra outros microrganismos, aprofundarem-se sobre os mecanismos de ação da tecnologia e, finalmente, avaliar sua biocompatibilidade para uma eventual aplicação em implantes.
Nesse sentido, serão fundamentais as parcerias com a Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Universidade de Campinas (Unicamp), por meio do professor Flávio B. Aguiar; com o Instituto Fraunhofer de Materiais Avançados, na pessoa do pesquisador Klaus Rischka; e com o Frankfurt Orofacial Regenerative Medicine, da Universidade de Frankfurt, por meio da colaboração do professor Shahram Ghanaati.
A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por meio do Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais.