De balões bombardeiros no século 19 às maquinas mortais usadas hoje pelos EUA: a história dos drones na guerra

A morte do general iraniano Qassem Soleimani em um ataque aéreo no início do mês marcou a primeira vez que um drone foi usado pelos Estados Unidos para assassinar um membro do alto escalão do governo de outro país em território estrangeiro.

Mas o uso de drones pelos EUA para matar alvos no exterior já é uma prática bem comum, que cresceu vertiginosamente nas duas últimas décadas.

Em sua configuração moderna, drones são aviões não-tripulados, controlados por satélite, que podem tirar fotos, fazer identificação de alvos e carregar mísseis com alto poder de fogo, entre outras funções.

Embora o uso de aeronaves não-tripuladas nas guerras tenha sido feito desde a Primeira Guerra Mundial, foi o desenvolvimento da tecnologia a partir dos anos 1980 que favoreceu sua utilização crescente nos anos posteriores.

Os drones armados — com mísseis acoplados — foram implementados a partir da chamada “Guerra ao Terror”, iniciada pelo presidente americano George W. Bush depois dos ataques de 11 de setembro de 2001. Eles atingiram seu auge durante o governo do presidente Barack Obama, entre 2008 e 2016.

Em oito anos, ele autorizou ao menos 526 ataques aéreos com drones em regiões que não estavam em situação de guerra ou conflito armado (os dados oficiais não contemplam os últimos 20 dias de governo).

O presidente Donald Trump ampliou esse uso para ainda mais territórios, culminando no ataque surpresa ao general iraniano.

Como se desenvolveu a tecnologia que permitiu aos drones se tornarem os robôs voadores altamente letais que são hoje? O que justifica a preferência por eles? E quais os riscos e questionamentos que envolvem o uso desse armamento?

Os primeiros veículos aéreos sem pilotos

O termo drone começou a ser usado para se referir a aviões não-tripulados ainda no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, depois de os britânicos criarem o Queen Bee, um avião de baixo custo, controlado por rádio, que servia de alvo no treinamento de pilotos da artilharia antiaérea.

Entre 1933 e 1943, os britânicos construíram 412 dessas aeronaves segundo o museu Havilland Aircraft, em Londres, que abriga um dos dois únicos exemplares restantes.

No entanto, o uso de veículos aéreos não-tripulados na guerra remonta até ao século 19, antes sequer da invenção do avião, quando em 1849 os austríacos usaram balões de ar carregando explosivos para bombardear a cidade de Veneza.

Foram usados cerca de 200 balões, segundo o professor de engenharia Russell Naughton, da Universidade Monash, na Austrália, mas eles causaram poucos danos à cidade italiana, e alguns até voltaram e explodiram nas linhas de combate austríacas.

O episódio, segundo Naughton, não foi o primeiro do tipo. Balões já haviam sido usados antes para reconhecimento de território. Mas é um do qual há registro, porque a revista Scientific American publicou uma nota sobre o bombardeio na época.

Logo após a invenção do avião no início do século 20, aeronaves sem piloto foram desenvolvidas durante a Primeira Guerra Mundial.

No livro Aviação Naval na Primeira Guerra Mundial, o historiador de aviação Lee Pearson descreveu os esforços do início do século para criar uma “bomba voadora”, um avião sem piloto que seria lançado por catapulta e voaria sobre as linhas inimigas. A invenção não foi eficiente e os esforços para desenvolveram desaceleraram após o fim da guerra, em 1918.

Na Segunda Guerra a tecnologia já tinha dado um salto. Os drones de então eram feitos a partir de aviões bombardeiros e controlados por rádio. Por não terem pilotos, podiam carregar o dobro de explosivos.

No entanto, as aeronaves eram basicamente precursoras dos mísseis teleguiados, porque não tinham a capacidade de retorno dos drones modernos.

Espiões durante a Guerra Fria

No pós-guerra, durante o período da Guerra Fria, os drones controlados por rádio e sem armamentos começaram a ser usados para espionagem.

Os EUA usavam as aeronaves não-tripuladas para sobrevoar países comunistas e trazer imagens feitas com câmeras fotográficas. No entanto, como eram operados por rádio, os controladores precisam estar relativamente perto dos drones, diminuindo seu alcance.

Com o desenvolvimento de satélites e de aviões espiões supersônicos, os drones não se tornaram centrais até que a sua tecnologia passasse a ter vantagens significativas em relação às outras formas de espionagem e ataque. E isso foi acontecer a partir dos anos 1980.

Em uma reportagem publicada em 1981, o jornal The New York Times registra como os drones de Israel “mantinham o olho nos árabes”.

Embora ainda controlados por rádio, os drones dessa época já tinham alguns desenvolvimentos tecnológicos que os tornavam muito úteis, como a habilidade de planar por longos períodos sobre o local vigiado e a possibilidade de carregá-los com transmissores para enviar imagens em tempo real.

Dois modelos eram usados em Israel em 1981, segundo o jornal: o israelense Tadiran Mastiff, um avião sem cabine de piloto e que podia ser carregado com câmeras de televisão que faziam transmissões diretas à base, e o Firebee, comprado pelos israelenses mas produzido nos EUA.

Entretanto, foi depois que os drones começaram a ser controlados por satélites — com a possibilidade de serem pilotados a quilômetros de distância — que seu uso cresceu vertiginosamente.

“Uma das razões pelas quais os países amam drones armados é que, além da precisão e habilitade de planar sobre o alvo, não há risco para os operadores, eles estão a milhas de distância. Isso é parte do atrativo [do armamento]”, afirma Letta Tayler, pesquisadora na área de conflitos, terrorismo e contraterrorismo da organização Human Rights Watch.

Diferentemente dos drones usados no século passado, os drones modernos têm enormes diferenças dos mísseis.

“Eles têm uma maior capacidade de manobra, podem ir e voltar, podem pairar muito tempo sobre o alvo antes de destruí-lo”, explica Alexandre Candeas, chefe do Departamento de Defesa do Ministério das Relações Exteriores.

“Mas eles também têm funções de reconhecimento, monitoramento e até mesmo de guerra eletrônica”, diz ele à BBC News Brasil. “Podem buscar informações eletromagnéticas, radas, sistemas de defesa e monitoramento de fronteira.”

A era dos drones

Em fevereiro de 2002, durante o governo do republicano George W. Bush, o drone Predator (predador, em inglês) foi equipado com um poderoso míssil chamado Hellfire e usado para um ataque dos EUA contra um alvo no Afeganistão que a CIA acreditava ser Osama bin Laden.

A operação da CIA (agência de inteligência americana) marcou o primeiro uso moderno de drones pelos EUA para matar um alvo em outro país. Até então, os drones eram usados em conjunto com operações militares existentes, durante conflitos, não de forma separada com alvos selecionados pela CIA.

Relatos de agências de notícias citavam testemunhas afirmando que as pessoas atingidas eram civis. Bin Laden não estava entre eles, mas a porta-voz do Pentágono na época disse que os americanos tinham “convicção de que o alvo era legítimo”, sem explicar quem era ou porque seria legítimo.

O ataque inaugurou a era dos drones, em que o armamento se tornou cada vez mais usado pelo governo no que ficou conhecido como “Guerra ao Terror”.

A administração de George W. Bush terminou desgastada pelas diversas operações militares americanas. Eleito com promessas de paz, seu sucessor, o presidente Barack Obama, encontrou nos ataques de drones uma forma de continuar o combate ao extremismo sem comprometer vidas de soldados americanos, dizem analistas.

“Os drones foram a maneira sorrateira que Obama encontrou de enfrentar o desgaste [da guerra] mas continuando as ações americanas da guerra ao terror”, afirma o diplomata brasileiro Guilherme Patriota, que foi representante do Brasil na conferência internacional sobre Desarmamento em Genebra, na Suíça, de 2018 a julho de 2019.

“De maneira geral, os drones podem atacar sem ônus, sem expor seu soldados, porque o controle é feito longe de seu território e sem perdas humanas do lado de quem o usa”, afirma Patriota.

“É uma guerra à distância, por controle remoto. É uma guerra mais ‘limpa’, que reduz a sensação de estar em guerra porque não afeta o dia a dia da população [do país que ataca com drones].”

“É (uma tecnologia) cada mais utilizada, inclusive com a nova possibilidade de enxames de drones, que podem servir para várias funções, incluindo monitoramento. Há também drones aquáticos, para rastrear submarinos, e até mesmo tanques drones, que ainda não são usados em escala tão grande”, diz Candeas.

Candeas afirma que interessa também ao Brasil produzir e ter drones. “Como toda tecnologia de ponta, é dual: pode ser usada também para proteger civis, para resgatar feridos, para operações de busca e salvamento”, afirma. “Não há relação direta com a sofisticação tecnológica e o prejuízo humano”.

Alvos legítimos?

Do Predator, usado na década passada, o modelo se desenvolveu para o drone usado hoje, que foi chamado de Reaper — em inglês, a palavra se refere à figura da morte encapuzada.

E após o aumento em seu uso durante a era Obama, os drones começaram a ser mais amplamente discutidos na imprensa e na comunidade internacional, com questionamentos sendo feitos com maior frequência. Mas afinal, o que há de tão específico em relação a esse tipo de armamento que levanta preocupações humanitárias?

Letta Tayler, da Human Rights Watch, que pesquisou um ataque aparentemente ilegal no Iêmen em 2012, afirma que a distância entre o operador e o ataque, por exemplo, levanta sérios questionamentos.

“Há algo excessivamente ‘sanitário’ nesses ataques? A distância entre a ação do drone e o operador é tão grande que matar se torna fácil demais? São questões válidas, difíceis de responder”, diz ela.

A questão não é a tecnologia do drone em si, dizem analistas, mas a forma como eles foram usados. Com os drones, EUA fizeram centenas de operações militares em países contra quem não estavam em guerra, como no Iêmen e no Paquistão.

“Quando há um conflito armado entre dois Estados, aplicam-se as leis internacionais de guerra”, explica Patriota. “Elas exigem que o ataque seja proporcional à ameaça, que respeita à vida de civis, que não afete a infra-estrutura necessária para viver e que sejam atingidos alvos legítimos, ou seja, militares.

No entanto, explica, no “combate ao terrorismo tudo isso fica meio nebuloso”.

Quando não há um conflito declarado, um operação em outro país, incluindo um ataque com drone para matar um alvo selecionado, em tese exigiria o consentimento daquele Estado.

O argumento dado pelo governo de Bush foi de que o país estava em “guerra contra o terror”, ou seja, uma guerra difusa que permitiria ações que em tese só seriam legais em situações de conflito — incluindo os ataques com drones.

“Os EUA argumentam que estão nessa guerra amorfa que os permite matar em qualquer tipo de ataque, em qualquer lugar e a qualquer momento”, afirma Tayler.

O governo Obama retomou essa lógica, mas dizendo que os EUA só agem em países que não “têm condição ou desejo” de combater jihadistas. Também estabeleceu uma lei para aumentar a transparência, obrigado o Pentágono a publicar um balanço dos ataques com drones todos os anos — norma que foi revogada pelo atual presidente, Donald Trump.

Ou seja, dizem os analistas, as principais preocupações envolvendo os ataques com drones estão relacionadas às políticas e decisões seguidas.

“Diferentemente de uma arma química ou biológica, que são proibidas, o drone não é considerado legal ou ilegal em si mesmo. Os ataques com drones são tão precisos e tão legais quanto as informações de inteligência usadas para guiá-los e quanto as definições usadas por países para argumentar que uma pessoa ou um grupo são alvos legítimos”, afirma Tayler.

Regulamentação

Os drones, em tese, se encaixam em um regime de regulação internacional chamado MTCR (Regime de controle de tecnologia de mísseis, na sigla em inglês).

Mas essa regulamentação não é suficiente, segundo Alexandre Candeas, porque ela é antiga e foi feita antes do desenvolvimento das tecnologias modernas de drones.

“Há um avanço muito rápido da tecnologia bélica que não é acompanhado pelo direito internacional”, afirma ele.

Candeas explica que a posição do Brasil na discussão internacional sobre o assunto é a defesa de um avanço na regulamentação tanto de drones quanto de outras inovações tecnológicas bélicas. “O Brasil sempre favorece o avanço do direito internacional sobretudo humanitário.”

Os drones podem ter diferentes níveis de autonomia — podem fazer a identificação e até a mira dos alvos automaticamente. No entanto, por enquanto, há sempre um ser humano tomando a decisão final de disparar ou não. Por isso eles ainda não são considerados armas letais autônomas (lethal autonomous weapon systems, ou LAWS, em inglês), como os soldados robôs que têm capacidade de decidir atirar ou não por si só. Para os LAWS, há uma discussão separada sobre legalidade e regulamentação — até porque eles ainda estão em desenvolvimento.

No entanto, mesmo no caso de drones, que já são uma realidade na guerra, a regulamentação sofre resistências, não só dos EUA, mas e outros países que estão desenvolvendo a tecnologia, como China, Rússia Israel.

“Eu não diria que há (na comunidade internacional) uma preocupação no sentido de decidir regulamentar. Houve sempre um esforço para manter essa tecnologia sem restrições. Russos, chineses, americanos… Quem desenvolve não tem interesse em regular”, afirma Guilherme Patriota. “Ninguém quer fazer muito barulho, porque no fundo todo mundo aspira a ter também essa tecnologia”, diz.

Em geral, a produção de drones aéreos é feita pelas mesmas empresas que desenvolvem tecnologia bélica aeronáutica, que já é estabelecida e muito poderosa, o que, segundo analistas, amplia a possibilidade lobby contra a regulamentação.

Fonte: BBC Brasil


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