Uma carga de 600 respiradores artificiais chineses comprada por estados do Nordeste ficou retida no aeroporto de Miami (EUA), onde fazia conexão aérea para ser enviada ao Brasil.
O contrato no valor de R$ 42 milhões assinado pelo governo da Bahia como representante da região foi cancelado pela empresa fornecedora sem maiores explicações, no início da semana.
“Alegaram apenas razões técnicas”, afirmou o secretário da Casa Civil da Bahia, Bruno Dauster. A empresa, cujo nome não foi revelado, disse que a carga teria outro destino, não especificado.
A desconfiança é que os equipamentos se destinem agora ao combate da crise do coronavírus nos EUA, que teriam acertado pagar mais à empresa chinesa.
“Estamos indo atrás de outro fornecedor”, disse Dauster. O valor não chegou a ser desembolsado pelo governo baiano.
O cancelamento da compra é exemplo de um fenômeno que vem acontecendo mundialmente, como revelou na quarta (1°) o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Agora que o presidente Donald Trump abandonou sua postura cética sobre o tamanho da crise e moderou as críticas à China, passou a olhar para o país asiático em busca de doações e compra de equipamentos. E outros países têm sido preteridos.
Apesar do risco de haver novos cancelamentos, governadores seguem recorrendo à China, por falta de opção.
A exemplo do que vem acontecendo em diversos aspectos do combate ao coronavírus, estão ignorando a linha adotada pelo presidente Jair Bolsonaro, de hostilidade aos chineses.
Com a crise na sua fase final, a China se vê em posição de ajudar o mundo, num processo que já foi batizado de “diplomacia da máscara”.
Além de ganhar pontos geopolíticos, os chineses aproveitam para fechar negócios, indicando fornecedores.
Mas o gargalo na produção da China provoca situações como a vivida pela Bahia.
“A China tem uma enorme capacidade de produção, mas a demanda é mundial. Por isso, as fábricas só estão aceitando pagamento antecipado, o que tem gerado problemas para muitos estados”, diz Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China.1 5
Empregado em fábrica de robôs em Beibei, no sudoeste da China, testa equipamento; companhias retomaram produção de autômatos em meio à crise do novo coronavírus.
A solução, diz ele, tem sido usar empresas chinesas baseadas no Brasil para atuar como “ponte”, pagando o fornecedor de forma adiantada e recebendo dos governadores quando a carga chega ao Brasil.
Segundo Tang, o mundo todo já percebeu que não pode prescindir da ajuda chinesa neste momento. “Até o Trump já deu uma acalmada. O único que ainda não foi é o discípulo dele aqui [Bolsonaro]”, afirma.
Com a hostilidade aberta da base bolsonarista à China, incluindo do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), os governadores têm feito contatos diretamente com a embaixada.
Empresas chinesas no Brasil, como a CCCC (China Communications Construction Company), de infraestrutura, e a State Grid, do setor elétrico, têm sido chamadas a ajudar a obter doações e intermediar compras.
Procurada pela Folha, a embaixada chinesa não quis se manifestar sobre os pedidos de ajuda, mas tem divulgado com destaque iniciativas nesse sentido.
Na última terça (31), anunciou a chegada de 50 mil pares de luvas doadas ao governo do Maranhão, com ajuda da CCCC e de empresas brasileiras. O estado é governado pelo comunista Flávio Dino.
A busca pelos chineses, no entanto, transcende ideologias. No Pará, o governador Helder Barbalho (MDB) acertou a compra de 400 leitos de UTI pré-montados, completos com respiradores, por R$ 48 milhões. A previsão é que a carga chinesa chegue em 15 dias —e por enquanto está mantida.
À Folha Barbalho disse que a China tem de ser vista como parceira neste momento, e não como responsável pela crise, como querem os aliados do presidente.
“Quem culpa a China pelo vírus não tem que sofrer avaliação, tem que sofrer interdição”, afirma.
Em São Paulo, onde o governador João Doria (PSDB) tem sido o principal antagonista de Bolsonaro no combate à crise, houve um pedido de ajuda na semana passada.
“Precisamos de camas de UTIs, respiradores, máscaras, equipamentos de proteção, luvas. Aceitaremos essa ajuda chinesa de bom grado”, diz Júlio Serson, secretário estadual de Relações Internacionais.
Segundo ele, o contato é facilitado pelo que ele chama de “relação absolutamente excepcional” de Doria com o governo chinês.
“Temos várias frentes de cooperação, nas áreas comercial e cultural sobretudo. Abrimos um escritório do governo do estado em Xangai, que é a maior demonstração que o governador poderia dar da importância que a China tem”, diz.
No Distrito Federal, o governador Ibaneis Rocha (MDB) enviou pedido formal de ajuda à embaixada, em 19 de março. Solicitou equipamentos e ajuda de especialistas.
“Temos visto a capacidade chinesa no combate à propagação da doença. Eles estão conseguindo mitigar os efeitos e podem nos oferecer cooperação técnica”, diz Renata Zuquim, chefe do escritório de assuntos internacionais do governo do Distrito Federal.
Ela diz que a primeira medida concreta de ajuda deve ser uma videoconferência entre profissionais da área de saúde do Distrito Federal e médicos da cidade chinesa de Chongqing, que lidaram com o coronavírus.
A tensão entre o governo federal e a China, segundo Zuquim, não afeta a relação do Distrito Federal com o país asiático. “O fato de termos uma proximidade até física com a embaixada nos ajuda. Tratamos diretamente com eles, têm sido muito prestativos”, afirma.
Segundo Tulio Cariello, coordenador de análise e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China, a maioria dos estados tem uma ligação sólida e antiga com os chineses, em razão de anos de projetos de cooperação e investimentos.
Ou seja, estão em posição de recorrer a essa relação agora, contornando a hostilidade apresentada por Bolsonaro e seu entorno.
“Os governos estaduais já têm um diá logo com a China que não passa pelo Itamaraty”, afirma.
Para Cariello, a China é pragmática e não tem problema nenhum em se relacionar com qualquer governo do mundo, com a única condição de que não se pode tocar em assuntos internos, como a repressão a direitos humanos e liberdades.
“Os governadores sabem que os chineses pensam em business [negócios]. Os estados do Nordeste têm uma boa relação com eles por causa de projetos de infraestrutura. Os do Centro-Oeste, em razão da soja. Há vários exemplos. E nenhum precisa de chancela do governo federal”, afirma.
Informações de Folha de São Paulo.